a luva pendurada na lateral da carroceria de um pequeno caminhão se desprende com o chacoalho da rua de terra e cai no chão

os poucos automóveis que diariamente passam sobre ela são suficientes para fixá-la ao terreno por, até agora, um ano e meio


já estava aqui desde antes de eu chegar
grudada no chão


perto de casa, encontro com ela no início de qualquer trajeto. torna-se um marco, ponto de referência espacial e temporal antes de qualquer deriva

fotografo-a ao longo desse tempo todo, atento à inércia


todos os dias ela vai mudando de forma, mas continua grudada ao chão

ficou debaixo da seca por seis meses. depois debaixo da chuva torrencial ao longo dos últimos três.
e continua ali, cada dia com outro formato e mais compactada ao solo

torna-se solo?
percebo uma camada de marcas e objetos humanos sendo depositada por todo o território e cuja decomposição pode apenas ser estimada

resiste a inestimáveis gerações de minha espécie

o tempo daquilo que deixo no espaço é de uma escala que meu corpo não consegue elaborar


qual é o tempo de um fóssil do antropoceno?
como serão as ruínas da civilização do descarte?


a luva não é da escala de tempo geológica, mas neste ano acompanhou todas as estações climáticas. mudando muito pouco


nunca toquei nela
agora, tirando a última foto, tive vontade de tocar.

mas não toquei